Os Espinhos
Conheci muita gente ridícula na minha vida. Pessoas inconvenientes, espaçosas, faladeiras, sem tato, sem noção e sem simancol. É fácil encontra-las no trabalho, na rua, na família — talvez a fonte principal e mais numerosa. Também li muito sobre elas. Suas personalidades comezinhas, seus modos ora subservientes ora cheios de uma empáfia imaginária e degradante são um prato cheio para os escritores, que criaram tipos “clássicos” de ridículos. E o mais engraçado disso é que a maioria acredita que você é a melhor amiga delas, quando na verdade adoraria poder estar em outro lugar e de preferência com pessoas não tão visivelmente chatas.
A única coisa que jamais se tem coragem de confessar é que você foi, é ou tem grandes chances de ser ridículo no futuro. Ou pior: não saber se um dia você foi, é ou será considerado ridículo — afinal ser ridículo é uma definição imposta por outros, e depois da primeira dificilmente as pessoas se esquecem. Aí você vira assunto de rodinha, com direito a cochichos, olhares e risinhos. Eu sei, você sabe: fazemos isso diariamente, quase na mesma freqüência com que respiramos. Não estou querendo dar uma de moralizadora. Falar mal das pessoas é uma forma de extravasar raivas e frustrações diante de pessoas que nos motivam a se sentir assim. Um ato natural, até saudável — e melhor do que dar um tiro no tal desafeto. E se elas dão motivo pra falar é inevitável, quase obrigatório. Mas nem perguntem o que acontece quando você — isso mesmo, VOCÊ — é o ridículo da trama. Melhor não perguntar.
Meu medo é me tornar exatamente aquilo que temo. O que todos nós, pelo menos uma vez na vida, tememos: o medo de nos tornarmos ridículos, dignos de pena ou merecedores de olhos revirados diante de uma aproximação. Há quem saiba ter sido ridículo num determinado momento e não guardar grandes traumas, podendo até rir da situação e de si mesmo. Mas há aqueles que vivem com a guarda levantada, temendo que as pessoas descubram que é capaz de ter atitudes incômodas. Aquela pessoa que te trata bem pode no fundo não te suportar, e até mesmo falar mal de você pelas costas. Como saber? Até que ponto você pode se aproximar de uma pessoa sem invadir a “zona de conforto”? Não sei, nunca me explicaram muita coisa sobre a vida e o pouco que aprendi foi na base da tentativa-erro. E nessa brincadeira levei muita pancada.
Talvez por isso seja mais fácil simplesmente não se envolver. Ou, pelo menos, manter uma distância regulamentar. Quando se passa despercebido não há nada de ruim ou de bom que se possa pensar ou falar. Conheço pessoas que vivem assim — ensimesmadas, fechadas em seu próprio mundo e restringindo o contato com o restante da humanidade ao mínimo necessário. Algumas até acham que vivem muito bem assim — e quem somos nós para duvidar? Mas aí eu me lembro que a idéia de viver numa redoma nunca me atraiu, já que passei uma boa temporada numa. Pior do que sofrer é ficar dormente, atrofiado, morto em existência. Pelo menos a dor te mostra que você ainda está vivo, e de vez em quando se tem a perspectiva de ter alegria, parar de chorar. Já disse isso uma vez: não me orgulho dessa minha coragem, acho até que coragem não é a palavra mais adequada. Talvez seja só a vida e a necessidade de ter alguém por perto falando mais alto — e a despeito de tudo, a vontade da vida sempre consegue se manifestar de alguma forma. Uma vez um professor de psicologia disse que se aproximar do outro é tão difícil quanto um beijo entre dois porcos-espinhos: por mais que eles se amem, fatalmente os espinhos que usam para se proteger acabam machucando o outro durante o contato. Espero um dia poder fazer com que meus espinhos não machuquem tanto.
quarta-feira, setembro 27, 2006
Por que (diabos) eu escrevo...
A minha relação com a escrita é árdua e contraditória. Escrever para mim sempre foi uma necessidade, uma coisa que sei que faço bem e na qual coloco o que há de melhor em mim. Mas ao mesmo tempo não consigo escrever tanto nem da forma como eu gostaria, ou porque não me acho boa o suficiente ou porque o ato de escrever exige muito de você, e eu não sei se eu tenho tanto assim a dar. Várias vezes eu tinha pensado em desistir de escrever até que assisti a uma entrevista com a Rachel de Queiroz — e ela é a escritora que mais admiro porque ela escreve de forma simples, traçando as coisas da vida com a mesma fluidez que a vida age sobre nós — dizendo que tinha uma preguiça absurda de escrever, a tal ponto que se alguém fosse vasculhar as gavetas de sua escrivaninha não encontraria sequer o rascunho de algo novo ou projetos paralelos. Não que isso tenha me consolado de todo, mas se Rachel foi o que foi sendo uma preguiçosa, quem sabe eu não tenho esperança?
Acho que escrevo desde antes de saber como escrever. Quando eu era bem menininha eu vivia divagando comigo mesma a história da Pasta Poderosa (meu Deus, eu não acredito que eu tô falando nisso, mas lá vai...). Era a história de uma princesa que precisava salvar o seu reino e o príncipe que ela amava usando a Pasta Poderosa, a única arma capaz de acabar com o mal do mundo. Acontece que, naquela época, começaram a aparecer as primeiras pastas de dente coloridas e a Signal vinha com aquelas linhazinhas vermelhas, bem docinhas e sabe Deus por quê eu achava aquilo o máximo (ah, eu tinha três anos e morava em Sobral, vocês queriam que eu divagasse sobre o existencialismo em Sartre?). Foi daí que surgiu a história da Pasta. Mas o importante disso tudo é que eu pegava várias folhas de papel e ficava tentando desenhar as letras, pensando nas situações que a minha princesa precisaria enfrentar para salvar o dia. Pobre da minha princesa, nunca dei um final para a sua jornada...
Depois que eu fiz a alfabetização, as coisas foram piorando. Minha mãe trabalhava no INSS (que no meu tempo ainda era INPS) e lá tinha um monte de máquina de escrever (porque no meu tempo ainda não tinha computador). Aí eu ficava a manhã toda lá, escrevendo umas notícias como se fosse de jornal. Acho que eu ouvia na televisão ou no programa do Isaías Nicolau (precursor sobralense do Ratinho no rádio que a Jesus, minha babá, adorava ouvir) e escrevia tudo na máquina. Minha mãe até hoje guarda uma “notícia” que eu fiz para a Folha de São Paulo sobre um assassinato a faca, ainda por cima com tinta vermelha! Naquela época eu achava lindo uma pessoa que sabia escrever à máquina, os dedos dançando no teclado, o barulho que ela fazia quando se empurrava aquele rolo pra bater a frase seguinte. E foi aí que eu comecei a pensar em ser jornalista, porque achava que todo dia eu ia poder escrever minhas histórias na máquina de escrever, não só as que eu ouvia como também as que brotassem da minha cabeça.
E hoje? Bom, minha mãe fez uma ótima economia quando se recusou a pagar um curso de datilografia pra mim e meu pai perdeu a grande esperança de ter uma médica na família. Eu comprei meu computador (em três prestações que pareciam não ter fim!) e a partir de hoje decidi que não vou usá-lo apenas para escrever o que eu ouço dos outros, mas também aquilo que se passa em mim (não vou dizer no meu coração ou na minha alma ou mesmo minha mente depois de ter lido Merleau-Ponty). Eu poderia contar muito mais sobre a minha história com a escrita, mas além de preguiçosa eu escrevo devagar e apenas com dois dedos (viu como o curso de datilografia poderia ter sido útil?). Então eu vou indo que tem um monte de texto e trabalho à minha espera. Adeus.
quinta-feira, agosto 17, 2006
Prova dos Nove
Hoje é o meu segundo dia em São Paulo. Sempre quis conhecer essa cidade, não só pela grandeza, pelos museus, pela vida noturna ou mesmo pela promissora 25 de Março (será que eu encontro um mp3 player por menos de R$ 100?). Queria conhecer para ter a minha opinião sobre ela. Sim, porque São Paulo é um lugar que se ama ou se odeia, não dá pra ficar em cima do muro. Antes de vir, ouvi desde elogios rasgados sobre como a cidade é limpa, organizada e tem polícia em quase toda esquina até os mais velhos clichês sobre a selva de pedra cruel e desumana na qual eu seria assaltada, estuprada e morta. E como as coisas ruins quase sempre ecoam mais forte em nossos corações, os dias que antecederam a viagem foram muito difíceis. Fiquei me perguntando o que faria lá (quer dizer, aqui). Claro, vim com um objetivo justo e bem definido, que era pesquisar filmes para a minha dissertação e, de quebra, ter umas merecidas férias, saindo do esquema praia do Ceará. Mas depois fiquei com medo. E se não desse certo? E se eu não encontrasse o que eu estava procurando (e não estou falando somente da minha pesquisa)? E se eu acabasse passando quinze dias trancada em casa, com medo de sair na rua?
O que eu sei é que meus medos se desfizeram na hora que entrei no avião, na madrugada de terça-feira. Senti que eu precisava fazer essa viagem. Precisava de outra temperatura, outras roupas, outras comidas, outros cheiros, outras pessoas, outro eu. Precisava, sobretudo, de uma alternativa, nem que fosse por quinze dias. Gosto da minha vida em Fortaleza, da minha família, dos meus amigos, das minhas atividades. Mas tem horas que a gente se cansa de tudo: o pensamento tacanho, o machismo, as limitações, as pessoas que acham que sabem o que é melhor pra você, o calor, o forró desmantelado, tudo. Aí é hora de conhecer outras coisas, lidar com outros códigos, não importa se você vai se adaptar a eles ou não.
Um dia antes de viajar, meu irmão comentou que jamais teria coragem de ir a São Paulo sozinho por tanto tempo. E olha que ele é um homem de quase 30 anos! Então eu olhei pra ele e respondi: “É porque eu sou ousada!”. Parece uma resposta boba, vinda de uma caçula que quer provocar a família. Nunca na minha vida me senti ousada, apesar de morar sozinha desde os catorze anos e de outras coisas que nenhuma das minhas amigas fez ou viveu. Mas a verdade é que eu estava dizendo aquilo para mim mesma, que eu era corajosa e forte o suficiente para enfrentar o desconhecido. Que eu era diferente do restante da minha família, mais apegada ao lugar onde nasceram e a uma vida calma e previsível. Que não deixaria as pequenas coisas me afastarem do caminho que tracei para mim mesma. Que mesmo que tivesse que sofrer eu não desistiria, a despeito de todas as previsões ruins que costumam fazer sobre mim. Tem horas que a gente precisa ser mais forte do que nós mesmas. Encontrar forças que não conhecia ou mesmo que não tinha para lidar com essa vida-rapadura (que é doce, mas também é bem dura). Estou tentando. São Paulo é meu estágio probatório.
O que eu sei é que meus medos se desfizeram na hora que entrei no avião, na madrugada de terça-feira. Senti que eu precisava fazer essa viagem. Precisava de outra temperatura, outras roupas, outras comidas, outros cheiros, outras pessoas, outro eu. Precisava, sobretudo, de uma alternativa, nem que fosse por quinze dias. Gosto da minha vida em Fortaleza, da minha família, dos meus amigos, das minhas atividades. Mas tem horas que a gente se cansa de tudo: o pensamento tacanho, o machismo, as limitações, as pessoas que acham que sabem o que é melhor pra você, o calor, o forró desmantelado, tudo. Aí é hora de conhecer outras coisas, lidar com outros códigos, não importa se você vai se adaptar a eles ou não.
Um dia antes de viajar, meu irmão comentou que jamais teria coragem de ir a São Paulo sozinho por tanto tempo. E olha que ele é um homem de quase 30 anos! Então eu olhei pra ele e respondi: “É porque eu sou ousada!”. Parece uma resposta boba, vinda de uma caçula que quer provocar a família. Nunca na minha vida me senti ousada, apesar de morar sozinha desde os catorze anos e de outras coisas que nenhuma das minhas amigas fez ou viveu. Mas a verdade é que eu estava dizendo aquilo para mim mesma, que eu era corajosa e forte o suficiente para enfrentar o desconhecido. Que eu era diferente do restante da minha família, mais apegada ao lugar onde nasceram e a uma vida calma e previsível. Que não deixaria as pequenas coisas me afastarem do caminho que tracei para mim mesma. Que mesmo que tivesse que sofrer eu não desistiria, a despeito de todas as previsões ruins que costumam fazer sobre mim. Tem horas que a gente precisa ser mais forte do que nós mesmas. Encontrar forças que não conhecia ou mesmo que não tinha para lidar com essa vida-rapadura (que é doce, mas também é bem dura). Estou tentando. São Paulo é meu estágio probatório.
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