segunda-feira, setembro 17, 2012

Sobre livros que se leem com uma mão só


Depois dos bruxos, vampiros, zumbis e jogos apocalípticos, a nova febre literária é Cinquenta Tons de Cinza, alçando o bom e velho livro de boudoir ao panteão dos best-sellers. Sobre o livro tenho apenas alguns lampejos de informação: os recordes de tiragem desbancando Harry Potter, a indução do consumo de produtos eróticos mesmo com os baldes de água fria da crise econômica, a compra dos direitos para filme, série, quadrinhos, audiobook — esse eu não sei, mas não seria má ideia — e por aí vai. Confesso que aproveitei uma ida à Saraiva mas foi só o tempo de ler o primeiro capítulo, portanto não deu, literalmente, pra chegar . As críticas não me ajudaram muito, extremadas entre as trincheiras do genial e do fajuto. E a gente fica sem saber se o livro vende muito porque é bom e os críticos são recalcados ou se as cifras são resultado de uma boa estratégia de marketing e os críticos são comprados.

O livro, mesmo, ainda não tive coragem de comprar. Não se trata de recalque, mas meu bolso se enche de pudores virginais em dar R$ 39,90 por um livro que não tenho certeza se é bom (é, gente, ser estudante é fazer escolhas). Também não é esnobismo literário, daqueles que só aceitam tratar do baixo-ventre de Balzac pra cima. Até porque jamais poderei negar a contribuição da tríade Sabrina-Júlia-Bianca na formação do meu caráter... libidinoso, por assim dizer.

Meu primeiro contato com literatura erótica foi por volta dos 12, 13 anos, por um desses des-caminhos da vida, quando já havia decidido frustrar o sonho de Vó Noquinha em entrar para um convento porque achava que as freiras não podiam tomar sorvete. Até então tudo o que eu sabia sobre sexo vinha de uma aula sobre aparelho reprodutor humano na quarta série. A professora explicou que os bebês eram fruto da fecundação do óvulo, que ficava dentro da mulher, pelo espermatozoide, guardado no homem. Então eu inocentemente perguntei como é que fazia pra um encontrar o outro, se ambos estavam em lugares diferentes. Entre os risos de chacota dos meninos e cochichos das meninas, a professora deu uns bodejos atravessados e eu continuei ignorando o modus operandi — até o dia em que a leseira deu um tempo e eu tirei minhas próprias conclusões, com espanto e nojo indescritíveis.

Vamos então ao grande encontro. Todo começo de ano meus pais compravam nosso material escolar na Livraria Zé Osmar, no Beco do Cotovelo, e junto com livros e cadernos ganhávamos de brinde exemplares de vários tipos, que ficaram encalhados do ano anterior. O curioso é que eles retiravam a capa e a contracapa dos livros e revistas, penso que era um modo de evitar revenda. Os quadrinhos, obviamente, eram fáceis de identificar, mas não tinha como saber do que se tratavam os livros, a não ser lendo! E depois de me esbaldar com a Magali e o Batman e sem nada pra fazer no resto das férias, comecei a ler os livros desencapados, sem saber onde estava me metendo.
Foi quando entrei em contato com um enredo que podia muito bem ser de uma novela das sete (veja bem, das sete, horário de família!): Spencer Rand (nunca esqueci esse nome), depois da morte da irmã e do cunhado num acidente, descobre que a sobrinha na verdade é sua filha. A menina era fruto de um romance que ele teve com a filha da empregada, mas ele fugiu de casa por causa de desavenças com o pai, homem rico e poderoso, sem saber que a namorada estava grávida. Usando de toda sua prepotência, o maquiavélico pai subornou o médico para que dissesse à jovem que a criança morrera no parto e entregou o bebê para sua filha, que não podia ter filhos. Então Spencer decide voltar para sua cidade natal para reencontrar seu amor de juventude e desfazer os erros do passado.


Até aí, nada de mais. Achei que era mais um romance açucarado e fui acompanhando os rocambolescos encontros e desencontros dos personagens. Lá pelo meio do livro, entretanto, os protagonistas finalmente sucumbem à paixão. Se fosse numa novela, teríamos a câmera se afastando do quarto ou a cena pudicamente velada por uma cortina de seda. No máximo algumas insinuações editadas de acordo com o horário. Mas num livro erótico eles vão direto ao ponto, intercalado por exclamações, reticências e muitas interjeições! E foram surgindo palavras e expressões que até então desconhecia, pegava o sentido mais pelo contexto — sorte que eu já não era tão lesada como na quarta série.

“Um frêmito de prazer atravessava-lhe a espinha”, “sentia o membro túrgido se avolumando por entre as roupas”, “a língua cálida fazia círculos de fogo nos seios”. O susto foi tão grande que joguei o livro longe. Aquelas palavras suscitavam coisas novas, eu sentia o coração batendo forte, a respiração acelerada, o rosto ardendo vermelho como se tivesse febre, e não sabia por que. O livro quase acabou na lixeira, eu achando a coisa mais suja e pervertida que alguém já havia escrito. A vontade de chegar até o fim, porém, acabou suplantando meus temores do Inferno, e passei a esconder o livro embaixo do colchão antes que alguém desconfiasse do seu teor. Devo ter lido essa história umas vinte vezes, até que outro ano chegou — e com ele novos livros sem capa a atiçar minha curiosidade.

O tempo e a maioridade me deram acesso aos clássicos: Balzac, Marquês de Sade, Mil e Uma Noites, João Ubaldo Ribeiro e José Lins do Rego — por isso eu odeio tanto essa pecha de regionalista que reduz a riqueza de vários livros e autores do Nordeste a “história de seca”. O autor do meu coração, porém, é D. H. Lawrence, com O Amante de Lady Chatterley. Não vou tirar o prazer de ninguém com spoilers, basta dizer que o livro, publicado em 1928, permaneceu proibido no Reino Unido até 1960, circulando clandestinamente em cópias piratas. E foi preciso um julgamento para liberar a publicação. Nomes como Raymond Williams e Richard Hoggart foram convocados para atestar ao júri o mérito literário da obra — a despeito das 30 referências às palavras “foda”, “trepar” e suas variações, bem como as 14 repetições de “boceta” e 13 de “colhões” ou “ovos”. Lawrence cogitou dar o título de Ternura a este livro, e creiam-me, não seria descabido. É uma história em que o sexo tem um papel redentor num mundo em desagregação, quando somente um amor despudorado, que ousa dizer seu nome em alto e bom som, pode vencer e paralisia emocional dos seres.

O que espero de Cinquenta Tons de Cinza? Que tenha pelo menos feito juz ao gênero. Pelo preço acho que tinha a obrigação de ser bem escrito, mas o primeiro capítulo que li furtivamente na livraria não me convenceu muito, nem pelo lado literário nem pelo sensitivo. Se conseguir excitar a fantasia da mesma forma que a Beverly Barton (dei uma busca no Google e descobri a autora do livro que me desencaminhou) fez com aquela leitora adolescente, já está valendo. Até porque ninguém estaria comprando se não provocasse pelo menos uma cosquinha mais inflamada. O segredo, no final das contas, é o mesmo do encontro do espermatozoide com o óvulo, que minha professora não soube explicar e demorei uma vida para aprender: sempre ir pelo mais simples — e não se levar muito a sério.