segunda-feira, dezembro 10, 2012

Sabotadores

Uma das frases mais famosas de Sartre é que o inferno são os outros. Bom, na minha perspectiva atual, seria um alento se o inferno se limitasse apenas a esse âmbito, pois bastaria um afastamento ou mesmo um isolamento, em casos extremos, para livrar-nos de todo o mal. O problema é que o inferno também pode estar dentro de nós, e disso não há como fugir. Refiro-me àquela voz baixinha, insistente, ranhenta como unhas arranhando uma parede. Uma voz que vira e mexe soa dentro de você para botar abaixo suas conquistas e realizações. São os pensamentos sabotadores, que em princípio podem ter uma certa função orgânica: evitar expectativas muito altas, puxar para a realidade de que aquele projeto ou pessoa pode não ser tudo o que você pensa e amortecer os sentimentos diante de uma possível queda.

Mas há momentos em que esses pensamentos sabotadores passam a tomar um espaço grande demais na sua vida, até torná-la praticamente inviável. Tomo-me como exemplo. Eu teria todos os motivos do mundo para concluir que 2012 foi um ano maravilhoso e pleno de realizações: passei no doutorado que eu queria, consegui uma bolsa de estudos que me permitiu sair de um emprego que já não me dava o mesmo sentido de realização, fiz uma viagem para Buenos Aires e outra para o Rio de Janeiro, tenho um marido maravilhoso e amigos que torcem verdadeiramente por mim. Se você me perguntar, no entanto, o que eu achei de 2012 e meu autocontrole não estiver nos melhores dias, eu vou dizer que foi uma bosta.

A sensação que eu tenho é de que todas essas mudanças aconteceram tão rápido que eu não pude sequer curtir o momento. Tive a notícia de que passei no doutorado em meio a uma crise de dor no punho que me deixou um mês de licença médica. Quando soube que havia uma vaga para a bolsa de estudos que eu tanto queria, tive que correr contra o tempo para garantir a documentos e fazer os protocolos necessários. E depois teve todo o processo de demissão do emprego, feito tão à pressa que não houve tempo para despedidas. E de um dia para o outro me vi sem o contato diário com meus colegas de trabalho, sem os almoços em que desabafávamos sobre nossas vidas e questões, em que ríamos e nos confortávamos mutuamente diante das mazelas da vida. Para arrematar, três das minhas melhores amigas foram morar em outras cidades, mais ou menos na mesma época. Claro, tinha o doutorado, mas é preciso tempo para firmar relações tão profundas quanto as que eu tinha na redação e com minhas amigas, atrapalhada pela greve que nos deixou quase três meses isolados em casa.

É aí que as vozes sabotadoras se multiplicam na sua cabeça, dizendo que você nadou, nadou mas fatalmente vai morrer na praia. Que você não merece ou não é boa o bastante para estar onde você está. Que você deu um passo maior que as pernas e agora o melhor seria voltar para a cidadezinha do interior de onde nunca deveria ter saído. E o pior é que você concorda em gênero, número e grau. As vozes começam a paralisar você, a deixar uma sensação de completo desânimo por dias e dias. E mesmo quando você faz um esforço para dar um sentido de disciplina aos seus afazeres, tudo parece tão acumulado e por fazer que você simplesmente desiste antes mesmo de começar. Aí vem a culpa, a sensação de que você está traindo todas as pessoas e instituições que confiaram em você, que você não passa de uma fraude.

Até mesmo escrever, que é a única coisa que penso conseguir fazer com um mínimo de decência, é prejudicado, sabotado por esses pensamentos. O que há para dizer? Quem está aí para ouvir, para ler, para se deixar tocar? E se tudo não passa de um ato de arrogância, de vaidade, como tanto outros que ocupam lista de best sellers, que são comentados nas redes sociais como os detentores da chave da verdade quando não passam de medíocres cuja moda vai passar até que chegue outra? E se a palavra for realmente uma mancha desnecessária no silêncio e no vazio, como disse Beckett?

A verdade é que estou escrevendo tudo isso como uma forma de exorcismo. E por incrível que pareça quem vem me dando esse sentido de mudança é Michel Foucault (e mais uma vez o pensamento sabotador vem me alertar o quão pretensiosa estou sendo, mas só desta vez vou tentar deixar pra lá). Entender Foucault não é fácil, conheço pessoas que o leem pelo menos uma vez por ano para ver se conseguem alcançar o elevado de seu pensamento filosófico. Eu mesma já comecei a ler "A Ordem do Discurso" umas cinco vezes, sem conseguir terminá-lo (e olha que é um livrinho humilhantemente fino e miúdo). Mas há um parágrafo, logo no começo desse livro, que não sei por que me fez pensar que, de alguma forma, ele também conhecia esses pensamentos sabotadores a nos deixar sem ação.

Gostaria de ter atrás de mim (tendo tomado a palavra há muito tempo, duplicando de antemão tudo o que vou dizer) uma voz que dissesse: "É preciso continuar, eu não posso continuar, é preciso continuar, é preciso pronunciar palavras enquanto as há, é preciso dizê-las até que elas me encontrem, até que me digam - estranho castigo, estranha falta, é preciso continuar, talvez já tenha acontecido, talvez já tenham dito, talvez me tenham levado ao limiar de minha história, diante da porta que se abre sobre minha história, eu me surpreenderia se ela se abrisse"

Eu não sei realmente o que tudo isso significa. Eu só precisava dizer. Eu só precisava atravessar o umbral das minhas incertezas e inquietações, mesmo sabendo que esta é uma trajetória de avanços e recuos. Para que a porta possa finalmente se abrir.